É apavorante sair de casa! Pelo menos para mim, um incurável misantropo. Mas meu cabelo insistia em crescer e tive de ir ao barbeiro. Sujeito simpático. Enquanto tesourava minhas melenas grisalhas, indiferente à minha cara de broa azeda, puxou conversa sobre amenidades, como a saúde, por exemplo.Tocado pela simpatia do veterano fígaro, aceitei a conversa e até comentei algumas idéias sobre os remédios e a qualidade de vida. Aí, sua sabedoria de anos de tesoura, me surpreendeu.
-" Seu Marat, o segredo de uma vida bem vivida está na moderação. O mal está nos excessos."
Com o vento do secador afastou algumas mechas cinzentas do tecido que me cobria e prosseguiu:
-" Pense nas coisas que ambicionamos a vida toda: Dinheiro, mulheres, sucesso, amizades, bens, boa mesa, saúde, coisas boas, não é? " Concordei com um grunhido, evitando mover a cabeça com receio que minha orelha fosse junto com o cabelo. E ele continuou:
-" Agora, imagine essas coisas boas em excesso: Dinheiro é útil mas em excesso cria problemas. Põe em risco sua segurança, atrai as piores pessoas e magoa as boas, acaba com a sua tranquilidade e nunca é suficiente para as coisas que você pretendia fazer. Você deixa de confiar nas pessoas mais queridas. Deve ser horrível ser milionário!" Apesar do meu sorriso cínico, notei um fundo de razão . Mas o mestre da tesoura estava inspirado:
-" Mulheres. Uma, enternece sua vida; duas, uma quer mais de você do que a outra teve, a terceira completa o desastre e a ex, então?..." Quase comi cabelo mas acabei rindo. E ele, implacável:
-"Sucesso; Não sabemos lidar com o sucesso e menos ainda com o poder. Até pela nossa cultura, somos na maioria facilmente corruptíveis. Se eu me tornar famoso, esquecerei meus amigos e se for eleito para uma função pública, mesmo sendo o homem íntegro que sou, me tornarei corrupto. É a nossa natureza."
Nessas horas me pergunto quantos sábios e filósofos anônimos se escondem em funções humildes, invisíveis no nosso dia a dia. O meu filósofo então mexeu um creme com um pincel e começou a me aplicar nos limites entre o cabelo e o pescoço. Olhou para o alto como em busca de inspiração e atacou:
-" Bens; Ter sua casinha, seu carrinho decente e companheiro, um trabalho que te supra o necessário e um pouquinho de supérfluo, afinal, um pouquinho de supérfluo é necessário, isso é bom. Agora, quando você acha que seu propósito de vida é amealhar bens, começa a asneira. Várias propriedades, um carro para cada pessoa da família, um terreno não sei aonde... quando percebe, você se tornou propriedade das suas propriedades! Sem notar, para amealhar esses bens comprometeu sua integridade, um bem muito mais valioso." O fígaro era eloquente. Palavras tão cortantes como a navalha com que ele entusiasticamente gesticulava:
-" Boa mesa; Quem já passou privações sabe melhor apreciar aquele cheirinho do feijão fresquinho colorindo o arroz quentinho, com uma misturinha e um café... Eitha coisa boa! Agora, come demais, prá ver. Na primeira vez, um sal de fruta resolve. Da segunda em diante, o abdome distende, dá prisão de ventre ou vira flor, plantado no vaso. A pressão sobe, não sei o quê desce e por aí vai... Fome? Apetite? Não. Apenas a tal de ansiedade trazendo a obesidade, o mal de nossos dias! "
O doutor da tesoura afrouxou o tecido no meu pescoço e removeu fios perdidos com uma escova. Tomou um espelho na parede e mostrou-me o aspecto civilizado que dera ao meu cabelo, comentando:
-" Saúde; Esse dom precioso. É boa mas quando a temos em excesso, na juventude por exemplo, abusamos. E como tudo, só valorizamos quando perdemos. Álcool: ajuda a relaxar e estimula o apetite mas em excesso nos priva da saúde, da consciência e corrói nosso caráter. Resumindo: A diferença entre o veneno e o remédio é a dose, doutor. "
Divertido com a inesperada sabedoria, puxei minha humilde carteira e perguntei quanto era.
- " Vinte Reais." Respondeu.
Paguei e saí dali, com o cabelo cortado e moderadamente mais sábio.
Sem excessos.
Marat